sexta-feira, 30 de novembro de 2007

Se depois de eu morrer

Se depois de eu morrer, quiserem escrever a minha biografia,
Não há nada mais simples
Tem só duas datas — a da minha nascença e a da minha morte.
Entre uma e outra cousa todos os dias são meus.

Sou fácil de definir.
Vi como um danado.
Amei as cousas sem sentimentalidade nenhuma.
Nunca tive um desejo que não pudesse realizar, porque nunca ceguei.
Mesmo ouvir nunca foi para mim senão um acompanhamento de ver.
Compreendi que as cousas são reais e todas diferentes umas das outras;
Compreendi isto com os olhos, nunca com o pensamento.
Compreender isto com o pensamento seria achá-las todas iguais.

Um dia deu-me o sono como a qualquer criança.
Fechei os olhos e dormi.
Além disso, fui o único poeta da Natureza.

Alberto Caeiro sobre Fernando Pessoa

1 comentário:

Anónimo disse...

MAR
Nunca conseguiu viver longe do mar.
A sua adolescência ficara cheia de dunas e de camarinhas, de falésias e águias, de tempestades, de nomes de barcos e de peixes; de aves e de luz coalhada à roda duma ilha.
Conhecera a ansiedade daqueles que, ao entardecer, olham meios cegos a vastidão incendiada do oceano - e ninguém sabe se esperam alguma coisa, alguma revelação, ou se estão ali sentados, apenas, para morrer.
Aprendera, também, que o mar, aquele mar - tarde ou cedo - só existiria dentro de si: como uma dor afiada, como um vestígio qualquer a que nos agarramos para suportar a melancólica travessia do mundo.
Depois, partiu para longe. E durante anos recordou, em sonhos, o mar avistado pela última vez ao fundo das ruas. Procurou-o sempre por onde andou, obsessivamente - mas nunca chegou a encontrá-lo.
Certa noite de bruma fria, em Antuérpia, no Zanzi-Bar, julgou ouvir o mar que perdera na voz dum jovem marinheiro grego. Mas não, o marulho que aquela voz derramava, junto à sua orelha, era de outro mar - fechado, calmo - propício aos amores inquietos e à lassidão embriagante do sol e do vício.
Anos mais tarde, em Delos, haveria de reconhecer a voz do marinheiro no rebentar das ondas, em redor da ilha, como um eco: onde te vi despir regresso agora / para adormecer ou chorar... e a noite caiu subitamente sobre ele, sobre a ilha e sobre o sonolento coração das leoas em pedra.
Uma outra vez, perto de Gibraltar, uma mulher idosa quis ler-lhe as linhas emaranhadas da mão. Já não se lembra o que lhe contou a mulher, acerca da vida e dos rumos da paixão. Recorda somente o que ela lhe disse ao separarem-se:
- Tens nos olhos a cor triste do mar que perdeste.
E passou bastante tempo antes que o homem voltasse ao seu país. Quando o fez, foi ao encontro do mar.
Largou a cidade e os amigos, a casa, o conforto, a noite, o trabalho e tudo o mais. Viajou em direcção ao sul, com a certeza de que jamais encontraria o mar perdido, em lugar incerto, a meio da sua vida.
Sabia agora que nenhum mar existia fora do seu corpo, e que tinha sido na perda irremediável de um mar que adquirira um outro onde, por noites de inquitante insónia, podia encontrar-se consigo mesmo e envelhecer sem sobressaltos; afastado da vã alegria dos homens e da pobreza do mundo.
Ao chegar junto do mar sentou-se no cimo da duna, como dantes, e esperou. Esperou que o mar guardado no fundo de si transbordasse, e fosse ao encontro daquele que perdera e se espraia agora à sua frente.
Ainda hoje permanece sentado, no mesmo lugar - esperando o instante em que os dois mares se dissiparão um no outro, para sempre.
Está cansado da guerra com as palavras e do veneno dos homens, tem os olhos queimados pelo sal. Os dedos adquiriram a rugosidade da areia e dos rochedos; da sua boca solta-se um marulhar surdo, muito antigo, que os dias e a solidão arrastam devagar para a luminosa euforia das águas.

In O ANJO MUDO
Al Berto